“Os tentáculos das armas se estendem de uma maneira mais ampla por toda a estrutura do governo. Tal presença não só é, certamente, uma das maiores da história brasileira de todos os tempos, de fazer inveja até mesmo aos períodos militares, como também ela tem rendido outros ganhos corporativos às Forças Armadas.” Essa é uma das conclusões do estudo A Militarização da Administração Pública no Brasil: Projeto de Nação ou Projeto de Poder?, do cientista político William Nozaki, que trata da presença dos militares no governo Bolsonaro. Com lançamento nesta terça-feira, às 17h, pelo site do Fórum Nacional das Carreiras Públicas de Estado (Fonacate), a pesquisa pretende contribuir para o debate sobre o tema.
“Em um período marcado pela intensa presença de militares na administração pública federal, é importante que o conjunto da sociedade civil possa ter conhecimento dos espaços ocupados pela farda no atual governo, tanto para avaliações positivas quanto para avaliações negativas de suas gestões. Um debate mais transparente e menos mistificado sobre a questão militar é importante para o Brasil.”
Partindo da construção histórica sobre o papel dos militares no país, o levantamento lembra a origem dessa tão delicada relação entre militares e governos civis. “A própria Constituição Cidadã de 1988 assegurou às Forças Armadas o papel de garantidora de lei e da ordem, abrindo precedentes para a arbitragem de tensões entre os Poderes e de conflitos no interior da sociedade.”
Muitos e estrategicamente colocados
Em seu levantamento, o professor lembra que se em 2018 a chapa presidencial vitoriosa foi composta por um capitão e um general, em 2020 a eleição teve o maior número de candidatos militares dos últimos 16 anos: foram 6.755 no total. “É crescente o número de militares cedidos para cargos civis no governo federal ao longo dos últimos anos.”
“Os militares das Forças Armadas conformam o grupo com maior presença na esplanada ministerial do governo Bolsonaro: até o final de 2020 esse segmento ocupou 10 ministérios.”
Os fardados estão inclusive em áreas nas quais não necessariamente contam com notório conhecimento. “Chama atenção a presença contundente no Ministério da Educação, fundamentalmente nas áreas ligadas ao ensino superior; no Ministério da Saúde atuando na Anvisa; no Ministério da Agricultura ocupando o Incra; no Ministério dos Direitos Humanos, ocupando a Funai; no Ministério da Cidadania, ocupando a pasta responsável pelos Esportes; no Ministério do Desenvolvimento Regional, ocupando o departamento responsável pela defesa civil”, elenca Nozaki.
“Os únicos ministérios que até o momento não contam com militares em cargos estratégicos são: Banco Central, AGU (Advocacia Geral da União) e Relações Exteriores, mesmo assim, nesse último caso, a política conservadora e extravagante do (agora ex) chanceler Ernesto Araújo deixou as Forças Armadas em alerta para uma eventual incidência mais contundente sobre o Itamaraty”, observa. “O intento se materializa no fato de a vice-presidência, também ocupada por um general militar, ter se tornado responsável por duas agendas estratégicas na área externa: o Conselho da Amazônia e as relações entre Brasil-China.”
Nacionalistas ou entreguistas?
Para Nozaki, os militares não são um grupo homogêneo, pois há diferenças relacionadas a especificidades e interesses de cada uma das armas, Exército, Aeronáutica e Marinha. Também, explica, não se cindem em bifurcações políticas esquemáticas que tentam separá-los entre “nacionalistas” e “entreguistas”, tampouco em dualidades econômicas simplificadoras entre “desenvolvimentistas” e “liberais”.
“Mais profícuo é analisar as diferenças de visão de mundo entre os militares da ativa e os da reserva e entre os generais de tropa que participaram de missões fora do país nos últimos anos e os que se concentraram nas atividades de Estado Maior, considerando, inclusive, a presença de novas matrizes ideológicas na formação das armas”, avalia. “Os militares não necessariamente dispõem de uma estratégia prévia, organizada teleologicamente, para o país, mas talvez disponham de uma tática prévia, organizada corporativamente, para se colocarem nos principais espaços decisórios do Estado-nacional.”
Segundo o cientista político, “um Brasil verdadeiramente democrático deve dispensar definitivamente a tutela das fardas e instalar de modo permanente o comando civil sobre o monopólio estatal da força e das armas”.
Responsabilidade e cumplicidade
Nozaki lembra, ainda, que militares estão também em postos de direção ou em conselhos de administração de algumas das maiores empresas estatais do país, como Petrobras, Eletrobras, Itaipu Binacional, Telebras, Correios e Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares.
Assim, diante de todos esses dados, o professor conclui: “Por todos esses motivos, não parece exagerado afirmar que os militares compõem o grupo melhor distribuído estrategicamente nos postos do governo e em condições de impor alguma tutela sobre o bolsonarismo caso a conjuntura conduza a esse cenário”.
E mais, para ele, não é mais possível isentar as alas militares da responsabilidade e da cumplicidade com o desastre protagonizado por Bolsonaro em seu governo. O caso do ex-ministro da saúde, general
Eduardo Pazuello, é dos mais emblemáticos na desmistificação da suposta aura de competência política, intelectual e administrativa dos militares.
E se dando bem
O cientista político destaca no estudo algumas das muitas peculiaridades da carreira militar no que se refere à remuneração de seus quadros. Dentre elas, a possibilidade de retorno às atividades quando são transferidos para a reserva remunerada, com um adicional de 30% dos proventos. Auxílios funeral e natalidade bem mais altos que os demais servidores públicos. “As diferenças remuneratórias foram intensificadas com a reforma do ‘sistema de proteção social’ dos militares.”
O professor lembra, ainda, que os estudantes militares contam com tempo de serviço desde o primeiro dia; os filhos de militares têm regras privilegiadas para ingressarem nas escolas militares; o atendimento à saúde, incluído no “sistema de proteção social”, vai desde o primeiro dia com a farda até o fim da vida.
“De fato, os militares contam com um sistema de proteção trabalhista, social e previdenciário que não está disponível para a maioria dos cidadãos e civis brasileiros. Nem mesmo os do setor formal da economia ou membros civis da burocracia pública”, informa. “Privilégios foram reafirmados e ampliados nas reformas previdenciária e trabalhista. Desde então os militares têm acumulado saldos e soldos e têm sido agraciados com mais e novas benesses pelo governo Bolsonaro.”
Nozaki reforça que, entre os servidores públicos, os militares são os que custam mais caro para a previdência. “Apesar disso, a reforma da previdência militar sancionada em 2019 (por Bolsonaro) deu mais vantagens a essa categoria”, diz. Enquanto trabalhadores da iniciativa privada se aposentarão com a média dos salários da ativa, militares terão salário integral. Além disso, não terão idade mínima obrigatória, enquanto do trabalhador comum se exigirá, gradualmente, que chegue até os 65 anos.
Fonte: Rede Brasil Atual